Trinta e dois anos e um dia

18 abr 2016 by josé carlos vaz, 3 Comments »

No dia 16 de abril de 1984 ocorreu o maior comício da campanha Diretas-Já. Centenas de milhares de pessoas fizeram uma manifestação pela democracia nunca superada no Brasil.

Hipnotizador -  Bohumil Kubišta  (1912)

Hipnotizador – Bohumil Kubišta (1912)

Naquele momento, a campanha já era praticamente uma unanimidade. Exceto o partido da ditadura (PDS, ex-Arena, pai dos atuais PP e DEM), praticamente todos os outros agrupamentos políticos defendiam as Diretas-Já. Com a emenda rejeitada, deu-se o acordão das elites: ao invés de, junto com o PT, aproveitar a mobilização e intensificar a luta pelas eleições diretas, o PMDB (que então incluía o grupo que fundaria o PSDB) preferiu aliar-se a parte dos apoiadores da ditadura. Lançou como candidato nas eleições indiretas Tancredo Neves (que tinha sido o primeiro-ministro no golpe parlamentarista contra João Goulart, em 1961). Deixou para trás a bandeira que havia levantado junto com o povo brasileiro e aceitou as eleições ilegítimas que tanto atacara. Seria a primeira das muitas traições que perpetuariam. Trinta e dois anos e um dia depois, o mesmo partido promove um golpe baseado em trapaças, traições e violação da Constituição, liderado por um criminoso que, em um país que tivesse Judiciário e imprensa minimamente dignos, já estaria preso há muito.

Lutar pelo fim da ditadura e pela maneira como encerrá-la tinha um conteúdo de luta política grandiosa. Apesar dos interesses pessoais e da corrupção, então muito farta, não deixava de ser uma disputa entre distintas formas de pensar o Brasil e diferentes modelos de fazer política. As lideranças que apoiaram a ditadura, e as que aliaram-se a elas, por piores que fossem, ainda pareciam ter um mínimo de noção de que a política precisa respeitar certos limites. Na votação que derrotou a emenda das diretas e na eleição do Colégio Eleitoral, não lembro que algum parlamentar tenha defendido a tortura. Ao menos, tinham vergonha de dizer certas coisas em público. Trinta e dois anos e um dia passados,  e o espetáculo do pronunciamento dos deputados golpistas mostrou que estamos entregues a uma mistura de fundamentalistas religiosos, trambiqueiros toscos, homofóbicos e fascistas ignorantes.

A bandidagem ainda é a mesma. Alguns daquela época ainda estão no negócio. Paulo Maluf era o candidato da ditatura, nas eleições indiretas de 1984. Ontem, votou a favor do golpe. Deixou o microfone com um sorrisinho zombeteiro. Passaram-se trinta e dois anos e um dia, e ele tornou-se apenas um personagem míudo, um parlamentar em busca de bons negócios: depois de ameaçar posicionar-se contra o golpe, deve ter conseguido o que queria. Naquela época, era o grande bandido nacional. Hoje, deve chamar Eduardo Cunha de professor.

Eu estava naquele comício de 1984. Havia passado a véspera preparando faixas com as crianças que participavam do grupo que eu animava na Igreja, como catequista. Foi emocionante (inclusive gritar “o povo não é bobo, fora Rede Globo” pela primeira vez). Na saída, subia a rua que vai do Anhangabaú para os fundos do Teatro Municipal, quando um colega de faculdade aproximou-se, abraçou-me e cantamos o coro “vai acabar, vai acabar, a ditadura militar”. Era o Cézar Minhoto, brilhante estudante de Física e Economia, trotskista da Libelu e especialista em Kafka. Creio que o Cézar tenha sido a pessoa mais inteligente que conheci em toda a minha vida, alguém realmente fora do normal. Ele, normalmente muito formal e contido, estava esfuziante, e afastou-se dançando e cantando. Trinta e dois anos e um dia depois, vi-me naquele mesmo ponto, recebendo a notícia de que o golpe da quadrilha de Cunha seria vitorioso.

Meu amigo Cézar não chegou a concluir a faculdade. Morreu dois anos depois, alguns meses antes de concluirmos nossos cursos. Dediquei a ele meu discurso de formatura. Sempre lamentei não poder tê-lo a meu lado nas outras lutas políticas que se seguiram. Queria tê-lo encontrado na Av. Paulista na comemoração da improvável vitória de Luiza Erundina em 1988. Senti sua falta nas eleições de 1989, para ajudar a enfrentar a Globo e Collor, prenunciando a direita raivosa que alimenta os golpistas de hoje. Teria sido muito bom reencontrá-lo na comemoração da vitória do projeto popular liderado por Lula, em 2002. Neste Anhangabaú entristecido, trinta e dois anos e um dia mais velhos, manteríamos nossa disposição, e reafirmaríamos  que não se pode parar de lutar contra a desigualdade e a opressão.

Neste dia em que a democracia é derrotada, saio do Anhangabaú como saí após o comício das diretas, seguro de estar do lado certo da trincheira: o lado da democracia, dos pobres, dos marginalizados e dos trabalhadores. Vejo uma citação de Hemingway: “– Quem estará nas trincheiras ao teu lado? ‐ E isso importa? ‐ Mais do que a própria guerra.” Trinta e dois anos e um dia depois, lembro do meu amigo Cézar e não há como não chorar.

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3 Comments

  1. Sergio Varella disse:

    Vaz, tomei a liberdade de publicar seu texto no Facebook.

  2. Paulo jannuzzi disse:

    Vaz
    Seu texto foi o que mais me confortou depois de domingo.
    Vale a pena estar na trincheira ao lado de pessoas como vc.
    Um grande abraço
    Paulo Jannuzzi

  3. M. do carmo M. T. Cruz disse:

    Vaz, queria te parabenizar pelo texto.
    Um beijo
    Carminha

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