Não se pode legitimar um governo golpista

10 jun 2016 by josé carlos vaz, No Comments »
George Grosz - Os Pilares da Sociedade (1926)

George Grosz – Os Pilares da Sociedade (1926)

É muito fácil descontinuar sutilmente políticas públicas. Para começar, muda-se o nome, retira-se status institucional do órgão responsável, nomeia-se dirigentes sem nenhuma identificação com o tema. Depois, reduz-se o orçamento e começa-se a negligenciar ações centrais. Para algumas delas, muda-se seu próprio sentido, sem mudar as aparências, gerando efeito oposto ao que se pretendia, sem que  olhos desatentos percebam.  Ao longo do processo, pode-se pegar algumas iniciativas e realizá-las, para mostrar a todos: vejam, estamos continuando a política. Para completar, chama-se para estas ações parceiros que também possam ser usados para que se possa dizer: e vejam quem está participando conosco. Os menos críticos e os mais otimistas irão crer que a política continua, sim, apenas recebeu ajustes naturais.

Recebi convite para participar da segunda etapa da Oficina de Cocriação “Avaliação e Simplificação de Serviços Públicos”, promovida pela Equipe OGP Brasil da CGU. Trata-se de uma iniciativa vinculada à Open Government Partnership, aliança internacional para promoção do Governo Aberto da qual o Brasil, por iniciativa da presidente Dilma Roussef, tornou-se um dos países líderes.

Apesar de considerá-la importante e torcer por sua continuidade, não pude sentir-me à vontade para participar.  Acredito que, neste momento, isto significaria legitimar um governo golpista chefiado por um grupo cujo qualificativo mais brando que tenho a lhe dar lembra uma dança junina.

É claro que falo de um processo político mais amplo, não da Equipe OGP Brasil, a quem muito prezo e respeito, e sei que tem apenas o objetivo de realizar da melhor maneira possível a agenda da OGP no Brasil. Abaixo, publico a mensagem que enviei explicando minhas razões.

 

Prezada Equipe OGP Brasil,

Primeiramente, gostaria de agradecer o convite para participar da segunda etapa da Oficina de Cocriação “Avaliação e Simplificação de Serviços Públicos”. Infelizmente, não pude participar da primeira etapa, por motivos fora de meu controle. Na ocasião do convite para a primeira etapa, senti-me muito honrado e demonstrei todo meu interesse em participar do processo.

Embora este interesse persista, sinto-me obrigado a declinar o convite para esta segunda etapa. Pensei bastante antes de fazê-lo, por conta de minha admiração e respeito ao trabalho da CGU e da Equipe OGP Brasil.

Evidentemente, a razão de não poder aceitar o convite em nada relaciona-se à oportunidade e importância da iniciativa.

O que me impede de participar da atividade é que, dada a situação à qual nosso país foi atirado por forças das mais perversas, não posso sentir-me à vontade em colaborar com um governo interino que considero ilegítimo e golpista. Não quero participar de processos que possam vir a ser utilizados para legitimar esse tipo de usurpadores no poder.

Este governo interino nasceu do conluio de agentes públicos interessados em impedir a luta anticorrupção, razão de ser da CGU. A pequena, mas terrivelmente vergonhosa, parcela da verdade que nos deixam conhecer através de cada vazamento de áudios e da folha corrida de numerosos indicados a altos postos governamentais, cujos currículos seriam mais adequados ao de presidiário, já justificaria minha atitude. Mas, além disso, não posso esquecer nem perdoar a forma desrespeitosa com que a própria CGU foi tratada pelos que assaltaram o Executivo. Tal atitude não foi uma afronta apenas aos servidores do órgão, mas, de maneira igualmente grave, à democracia.

Dessa maneira, peço que me desculpem por recursar o convite tão gentil, mas o faço em respeito não somente ao povo brasileiro, mas à CGU e aos seus servidores, que são motivo de orgulho para o Brasil. Espero que, quando este momento de trágica farsa houver passado e a democracia houver sido reestabelecida em nosso país, eu possa voltar a aceitar, com muita honra, seus convites.

Atenciosamente,

Prof. Dr. José Carlos Vaz
Professor do Curso de Gestão de Políticas Públicas
Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP)
Universidade de São Paulo

 

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