O significado da eleição (2) – A dissolução ideológica do PSDB

3 set 2010 by josé carlos vaz, No Comments »

1989: Covas, Lula e Brizola juntos no segundo turno (Foto: Chico Ferreira/Folha Imagem).

Há algum tempo,  escrevi aqui sobre minha tristeza em ver a nova UDN em que se vai transformando o PSDB.  Na ocasião, referia-me à lamentável situação de  ver antigos defensores da democracia e dos movimentos sociais promovendo a repressão aos moradores do Jardim Romano, agredidos pelos governantes que encheram suas casas de esgoto.

O artigo abaixo, do professor Vladimir Safatle, mostra que aquele não foi um fato isolado. Na verdade, o que acontece om o PSDB é uma dissolução ideológica. O partido não conseguiu manter-se fiel às idéias de centro-esquerda que originaram sua criação. Foi incapaz de construir uma base social com vínculos com os movimentos sociais e setores mais progressistas da sociedade. Restou-lhe o triste papel de representante dos setores mais conservadores. Para sobreviver, essa neo-UDN assume o discurso e as práticas dos golpistas que combatiam. Sem uma proposta de modelo de desenvolvimento nacional,  sobrou-lhe o discurso da classe média reacionária, temerosa de perder as migalhas que trata como privilégios.

O colapso do PSDB

Vladimir Safatle (publicado na Folha de S. Paulo)

O caráter errático da campanha é o último capítulo da dissolução ideológica do partido

Há algo de melancólico na trajetória do PSDB. Talvez aqueles que, como eu, votaram no partido em seu início, lembrem do momento em que a então deputada conservadora Sandra Cavalcanti teve seu pedido de filiação negado. Motivo: divergência ideológica.
De fato, o PSDB nasceu, entre outras coisas, de uma tentativa de clarificação ideológica de uma parcela de históricos do MDB mais afeitos às temáticas da socialdemocracia européia.
Basta lembrarmos dos votos e discussões de um de seus líderes, Mario Covas, na constituinte. Boa parte deles iam na direção do fortalecimento dos sindicatos e da capacidade gerencial do Estado. Uma perspectiva contra a qual seu próprio partido voltou-se anos depois.
A história do PSDB parece ser a história do paulatino distanciamento desse impulso inicial. Ao chegarem ao poder federal, os partidos socialdemocratas que lhe serviram de modelo (como os trabalhistas ingleses e o SPD alemão) haviam começado um processo irreversível de desmonte das conquistas sociais que eles mesmos realizaram décadas atrás. Um desmonte que foi acompanhado pela absorção de suas agendas políticas por temáticas vindas da direita, como a segurança, a imigração, a diminuição da capacidade de intervenção do estado, entre outros.
Este movimento foi reproduzido pelo governo de Fernando Henrique Cardoso.
Assim, víamos uma geração de políticos que citavam, de dia, Marx, Gramsci, Celso Furtado e, à noite, procuravam levar a cabo o “desmonte do estado getulista”, “a quebra da sanha corporativa dos sindicatos”, ou “a defesa do Estado de direito contra os terroristas do MST”.
O resultado não foi muito diferente do que ocorreu com os partidos socialdemocratas europeus. Fracassos eleitorais se avolumaram, resultantes, principalmente, de uma esquizofrenia que os faziam ir cada vez mais à direita e, vez por outra, sentir nostalgia de traços ainda não totalmente extirpados de discursos classicamente socialdemocratas. No caso alemão, o SPD acabou prensado entre uma direita clara (CDU, FDP) e uma esquerda renovada (Die Linke).
No caso brasileiro, esta eleição demonstra tal lógica elevada ao paroxismo. Assistimos agora ao candidato do PSDB ensaiar, cada vez mais, um figurino de Carlos Lacerda bandeirante; com seu discurso pautado pela denúncia do aumento galopante da insegurança, do narcotráfico, do angelismo do governo com o terrorismo internacional das Farcs e, agora, o risco surreal de “chavismo” contra nossa democracia. Um figurino que não deixa de dar lugar, vez por outra, a uma defesa de que é de esquerda, de que recebeu palavras carinhosas de Leonel Brizola, de que vê em Lula alguém “acima do bem e do mal” etc.
Nesse sentido, o caráter errático de sua campanha não é apenas um traço de seu caráter ou um problema de cálculo de marketing.
Trata-se do capítulo final da dissolução ideológica de uma sigla que só teria alguma chance se tivesse ensaiado algo que o PS francês tenta hoje: reorientação programática a partir de um discurso mais voltado à esquerda e (algo que nunca um tucano terá a coragem de fazer) autocrítica em relação a erros do passado.


VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP

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