Hoje é o Dia Mundial Sem Carro. E eu vim ao trabalho dirigindo meu automóvel. Essa é a situação em uma cidade sem uma política de mobilidade sustentável: até quem se preocupa com essas bandeiras tão nefelibatas tem que pagar seu tributo ao deus-tirano automóvel.
O Dia Mundial Sem Carro faz parte de uma campanha internacional que visa promover a reflexão sobre a irracionalidade e os efeitos danosos do uso do automóvel nas cidades. Todo ano tem sido a mesma coisa: algumas prefeituras chegam a fazer alguns atos, um gesto simbólico aqui e ali, matérias na imprensa que também são sempre a mesma.
Colocar faixas em ônibus é fácil. Colocar dinheiro no transporte público nem tanto...
Algo que caracteriza a cobertura e a discussão sobre o Dia Mundial Sem Carro, todos os anos, é a resignação. Os ambientalistas e ativistas da bicicleta ou do transporte coletivo fazem um discurso sobre grandes idéias e princípios, mais do que propostas capazes de empolgar a sociedade. Muitas vezes propõem apenas um enunciado de princípios genérios, que recebem o mesmo tratamento que a mensagem de um pregador da paz universal: todo mundo diz que é bonito, mas sem nenhuma possibilidade de ser realizado.
Além disso, a imprensa pouco faz para questionar e provocar. Nunca vemos, por exemplo, uma análise mais séria dos investimentos realizados na redução de viagens em transporte motorizado individual. Ou uma clarificação do jogo de interesses que está por trás da opção pelo automóvel.
Segundo Nazareno Affonso, um dos maiores especialistas em mobilidade urbana do país, a política de incentivo ao uso do automóvel é a mais consolidada e longeva das políticas públicas brasileiras. Mesmo sem uma linha escrita, sem um lei específica, sem um orgão público para executá-la. Está totalmente introjetada no senso comum da nossa sociedade e nas práticas dos governantes.
Não é sem motivo, portanto, que a realização de obras viárias é sempre um motivo de orgulho para os governantes. Não é sem motivo que a indústria automobilística recebe tantos incentivos e benefícios. Não é sem motivo que as famílias gastam parcelas significativas de seu orçamento com automóveis. Não é sem motivo que comprar um carro é a primeira prioridade de quem melhora um pouco de vida. O automóvel é, antes de tudo, um valor fundamental de nossa sociedade.
Em uma sociedade desigual como a brasileira, é natural que os indivíduos tentem adotar estratégias de diferenciação. É preciso que os demais vejam que não se é pobre. O automóvel é uma das estratégias à disposição. Essa postura, nas últimas décadas, alimentou a idéia de que o transporte público é coisa para pobre. E, portanto, pode ser um serviço de segunda linha. Como se tornou a educação pública, por exemplo. Essa visão, no fundo, vai embutir um preconceito de classe, tão presente em nossa desigual sociedade.
No caso de São Paulo, isso é evidente. Não resiste a uma análise dos investimentos realizados por sucessivos governos. Presentemente, na capital, vemos um enorme investimento para construção de novas pistas para a Marginal Tietê a toque de caixa, em detrimento da aceleração da expansão do metrô, da construção de novos corredores de ônibus ou da recuperação dos serviços de trens metropolitanos da CPTM. E muita propaganda para o pouco que é feito…
No transporte coletivo, a estratégia parece ser a de empurrar com a barriga. No caso do bilhete único, que permitiu a integração tarifária e tornou os deslocamentos longos mais baratos, viu-se inicialmente o boicote do governo do Estado à sua integração ao transporte por trilhos, até 2004. Depois, com o mesmo partido governando municipio e estado, houve a integração, mas a mudança nas regras tornou mais restritiva sua utilização, prejudicando os usuários. Poucos investimentos têm sido feitos para expandir realmente a capacidade operacional do ineficiente sistema de ônibus da capital. A prioridade das melhores vias continua sendo dada aos veículos particulares, a frota é inadequada, a informação ao usuário é paupérrima, os ônibus disputam espaço com os carros…
Em uma aglomeração urbana como São Paulo, convivem cerca de meia centena de entidades reguladoras da mobilidade, contando-se 39 municípios, uma secretaria de transportes metropolitanos, duas companhias de transporte sobre trilhos, várias entidades municipais de trânsito e transporte público etc. O resultado é de uma ineficiência atroz: superposição de sistemas, tarifas intermunicipais muito elevadas, baixo nível de integração e alta concorrência entre serviços. Não se vê um movimento sequer para instaurar novos padrões de governança do sistema de mobilidade urbana. Por quê?
Seguramente, porque a situação atual é muito conveniente para alguns atores. Começando pelos empresários de ônibus, que se beneficiam da desorganização para obter melhores tarifas nos municípios com menor capacidade de regulação e naqueles em que conseguem fazer valer seus interesses mais facilmente, além da exploração dos serviços intermunicipais. Não é sem motivo que os empresários de ônibus têm uma grande influência na política dos municípios.
Do lado dos atores políticos, a incapacidade institucional é conveniente para os governos estadual e municipais, pois lhes dá mais autonomia para agir de acordo com seus interesses. Lideranças dispostas a lutar pela criação de arranjos institucionais inovadores, se existissem, encontrariam enorme resistência. Podemos dizer que a mobilidade urbana é um excelente exemplo da situação de um país que não sabe o que fazer com suas metrópoles.
Nos últimos anos, temos assistido uma mobilização crescente dos entusiastas do uso das bicicletas. Muito oportuna, mas infelizmente ainda tímida frente ao tamanho da necessidade. O poder público tem respondido de maneira demagógica, criando ciclofaixas inadequadas e propondo ciclovias de lazer. É preciso deixar claro que o uso de bicicleta para o lazer é completamente diferente do seu uso como meio de locomoção. Há diferenças gritantes em termos de horários, microacessibilidade, localização. Não dá para festejar porque a prefeitura liberou uma faixa de uma grande avenida para ciclistas no domingo pela manhã. O que isso melhora a mobilidade urbana? Nada! Apenas oferece uma opção de lazer para a classe média passear em suas bikes… A prefeitura estaria, de fato, promovendo uma mobilidade sustentável se transformasse essa mesma faixa em ciclovia permanente.
São Paulo precisa construir uma agenda de mobilidade sustentável que se transforme em bandeira de luta de vários setores. O problema de São Paulo é maior em escala, mas em termos de política pública é parecido com o de outras aglomerações urbanas brasileiras. Assim, a agenda de mobilidade sustentável de São Paulo precisa ser uma agenda também nacional. Entre outros, alguns pontos têm sido apontados como necessários:
- Mecanismos de restrição de uso de automóvel em vias urbanas (restrição de circulação, rodízios, fechamento de vias, pedágios urbanos etc.):
- Vinculação da disponibilidade de recursos para o transporte individual ao atendimento de metas de aplicação de recursos para o transporte público;
- Expansão significativa de sistemas de alta capacidade, substituindo os atuais programas de expansão em gotas por programas de longo prazo e execução obrigatória;
- Alterações no sistema tributário para desestímulo do uso de automóvel e financiamento do transporte público;
- Reversão do uso de vias, retirando faixas de automóveis para transformação em faixas exclusivas e corredores de ônibus;
- Estímulo à ocupação residencial do centro de São Paulo por trabalhadores de renda baixa e renda média, otimizando o uso da infra-estrutura existente;
- Descentralização territorial da oferta de empregos na metrópole, quebrando a lógica da especulação imobiliária e da segregação espacial;
- Criação de arranjos institucionais metropolitanos para gestão da mobilidade urbana, incluindo o fortalecimento da capacidade dos municipios para a gestão da mobilidade urbana.
Essa agenda para promoção da mobilidade sustentável não pode ser vista como desarticulada de outras agendas. Nem pode ser reduzida a uma agenda “técnica”. Não se trata de escolher entre o sistema A ou B, de maneira despolitizada. Sua força estará exatemente na capacidade de politizar o tema, ou seja, desvelar os interesses ocultos, que poderiam ser resumidos na produção do caos urbano e da segregação territorial para a manutenção de privilégios e exploração política e econômica da situação.
O desafio é que essa agenda precisa ter propostas concretas. Em breve pretendo voltar a ela, apontando algumas possibilidades.
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